Entre crises e recomeços

A história dos últimos cem anos é marcada por 
episódios de crises, quebras e recessões, 
mas também por retomadas e 
mudanças de comportamentos

Quando o navio Demerara aportou no Brasil – fazendo paradas nos principais portos como Recife, Salvador e Rio de Janeiro – com ele desembarcou um vírus mortal. Rapidamente a doença se espalhou pelo país e as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo foram as mais afetadas. O Serviço de Profilaxia do Porto, no Rio de Janeiro, foi alvo de severas críticas da opinião pública, pois não conseguia fazer a desinfecção de todos os navios que aportavam e porque acreditava que aplicar a quarentena em embarcações acarretaria problemas políticos, sociais e econômicos.

Os moradores evitavam sair de casa, as fábricas, comércios, oficinas permaneceram fechados por falta de proprietários e empregados sadios e aptos para o trabalho. Aulas foram suspensas para evitar a propagação da doença e a fome manifestou-se em todo o país. Os preços dos produtos subiram, começou a faltar medicamentos nas farmácias e os remédios tidos como milagrosos, como o quinino e a aspirina, eram comercializados a preços excessivos. O sepultamento dos mortos também foi um problema enfrentado, e os veículos da saúde pública não conseguiam atender a todos os chamados para recolher os corpos. “Os armazéns fecham-se, os açougues fecham-se, falta o leite de que se alimentam as creanças e os enfermos – e a gente procura debalde uma proteccção superior, que evite o desastre fatal (…). Soffresse a população da capital da Republica, espalhasse o morbus – que parece não ser de simples gripe – ao paiz inteiro. (…) Com o facto de se conservarem abertos os cinemas na cidade, tem havido a exploração de que os seus proprietários escarnecem desta situação dolorosa”: o jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro trazia um cenário que poderia ser contemporâneo, mas apresentava um relato do Brasil de 1918, assolado pela Gripe Espanhola. Os números de mortos pela pandemia não são exatos, mas estima-se que em todo o mundo tenham sido mais de 50 milhões de pessoas e, no Brasil, 35 mil óbitos.

Uma das salas da Cruz Vermelha Brasileira onde foram recolhidos inúmeros enfermos.
Registro publicado no Semanário Fon Fon. Acervo da Hemeroteca da Biblioteca Nacional

A Gripe Espanhola no Paraná
Foi por Paranaguá que a gripe chegou ao Paraná. A cidade recebeu convidados, vindos do Rio de Janeiro, para um casamento e, alguns deles, estavam contaminados com o vírus. A partir daí, a doença se espalhou pelo estado.

Para tentar frear a disseminação do vírus, algumas medidas foram tomadas, como a fiscalização da estrada de ferro que liga Curitiba a Paranaguá e a desinfecção de bagagens.

A Diretoria Geral do Serviço Sanitário de Curitiba, presidida pelo médico Trajano Reis, publicou, no jornal A República, orientações e determinações quanto à pandemia, entre elas, o pedido para que as pessoas evitassem visitas, que clínicos notificassem os casos suspeitos para que as providências pudessem ser tomadas, que os enterros de acometidos pela doença fossem feitos sem acompanhamento, que cocheiros não transportassem doentes e que as igrejas permanecessem fechadas.

Com uma população de pouco mais de 73 mil pessoas, Curitiba teve, segundo Zulmara Clara Sauner Posse e  Elizabeth Amorim de Castro, em As virtudes do bem-morar, mais de 60% da população contaminada. “Em 1918, no período de 14 de outubro a 14 de dezembro, a epidemia da gripe espanhola, ou ‘influenza’, assolou a capital do Paraná, contaminando 45.249 pessoas e matando 384.”

1ª Guerra Mundial
O fim da Grande Guerra Mundial ocorreu concomitantemente à pandemia da Gripe Espanhola. O conflito que era para ser de rápida duração, conforme previam tanto a Tríplice Entente quanto a Tríplice Aliança, durou quatro anos e mais de nove milhões de soldados foram abatidos em campos e trincheiras.

A mútua antipatia entre Alemanha e França e Rússia e Áustria-Hungria foi o estopim para detonar o conflito, em julho de 1914, que logo se tornou uma guerra europeia e, com o correr do tempo, mundial. O Brasil entrou no conflito, já perto do seu fim, enviando uma missão médica à Europa. Inclusive montando um hospital em terras francesas.

Com o fim das batalhas, a aliança liderada por França e Inglaterra foi declarada vitoriosa, mas foram inúmeros os prejuízos econômicos e sociais. A Europa, considerada símbolo de prosperidade, estava endividada, houve desvalorização das moedas, o parque industrial foi reduzido pela metade e houve queda de mais de 30% no potencial agrícola.

Uma das principais alterações no cenário internacional foi a alavancada da economia norte-americana, que se tornou a grande potência mundial, com o fortalecimento da indústria nacional, exportações triplicadas e aumento de renda.

No Brasil, as exportações de café caíram consideravelmente, mas as da borracha – apesar de sofrerem a concorrência do Oriente –, aumentaram no período bélico. Impossibilitado de importar durante o conflito, o país passou por um processo de industrialização interna.

Grande Depressão
Depois da 1ª Guerra Mundial, a economia de todo o globo lutava para recuperar os estragos causados pelo conflito. Nos Estados Unidos, com a produção em massa, havia emprego, grande produção na agricultura, consumo interno em alta e expansão do crédito. José Jobson de Arruda, em História Moderna e Contemporânea, revela que “as reservas de ouro acumuladas nos bancos norte-americanos superavam as de todos os outros países do mundo. Nenhum outro país alcançara antes tamanha supremacia financeira”.

Com os volumosos empréstimos norte-americanos aos países europeus, a Europa começou a dar sinais de recuperação. “O crescimento econômico dos Estados Unidos veio acompanhado por um estado de extrema euforia social, o que dificultava uma visão crítica dos perigos que esse crescimento desordenado poderia causar. A crise de 1929 foi causada, sobretudo, pela insistência norte-americana em manter depois da guerra o mesmo ritmo de produção alcançado durante ela”, destaca Arruda.

Com os crescentes estoques de produtos agrícolas, houve a redução dos preços das commodities, falência de fazendeiros, excesso da produção industrial, desemprego e consumo em baixa, com tudo se refletindo na Bolsa de Valores de Nova Iorque. Arruda explica que “para evitar a crise total, e pretendendo aproveitar-se da baixa geral, um grupo de banqueiros de Nova Iorque comprou uma imensa quantidade de ações, das mais variadas companhias, a preços muito baixos, pretendendo vendê-las a preços altos. Quando lançaram as ações no mercado, elas não valiam nada”. O resultado dessa atitude foi falência coletiva, desemprego em todo o país e os reflexos da crise foram sentidos em todo o mundo.

No Brasil, o café – que representava mais de 70% das exportações – não era mais comprado pelo mercado externo e os preços do produto despencaram. A medida tomada pelo governo brasileiro, para conter a desvalorização do café, foi a compra e a queima de toneladas do produto. “A indústria foi de certa forma beneficiada, pois capitais anteriormente investidos no café passaram a ser aplicados na indústria. Com a desvalorização da moeda brasileira e a consequente elevação dos preços dos produtos estrangeiros, houve um estímulo para a fabricação de produtos similares no Brasil”, conta Arruda.

Para restaurar a economia, o presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt criou o plano chamado New Deal, que, entre tantas medidas, estimulou o aumento do poder aquisitivo dos assalariados, ampliou o mercado interno, limitou a produção de commodities para controlar o preço e ocupou a mão de obra – que estava desempregada – em obras públicas.

A cúpula do edifício permaneceu intacta após o
bombardeio atômico em Hiroshima.
Hoje o local recebe o nome de Memorial da Paz de Hiroshima

2ª Guerra Mundial
As rusgas criadas pela 1ª Guerra Mundial não foram extintas após o término do conflito. O período entre guerras foi marcado pelo sentimento de revanche, pela implantação do fascismo na Itália – por Mussolini –, e pelo conflito armado que se estendeu por toda a Espanha. A Alemanha, que enfrentava graves dificuldades econômicas e fome, viu Hitler se tornar extremamente popular e publicar o livro Mein Kampf, com ideias de extrema direita e antissemitas, defendendo a superioridade do povo alemão, e um nacionalismo extremado.
Portão principal do campo de concentração de Aushwitz,
na Polônia, onde 1,1 milhão de pessoas foram mortas pelo
exército nazista durante a 2ª Guerra Mundial
Hitler toma o poder na Alemanha no início dos anos 30. Quando as forças alemãs invadem a Polônia, em setembro de 1939, materializou- -se o gatilho para que Inglaterra e França declarassem guerra à Alemanha – era o começo da 2ª Guerra Mundial, a mais destrutiva da história, estendendo-se até 1945.

Resumidamente, dezenas de países foram envolvidos, 100 milhões de homens lutaram, 37,6 milhões morreram, milhões de judeus foram mortos em campos de concentração, Hiroshima e Nagasaki foram arrasadas com bombardeios atômicos. Itália, Japão e Alemanha, os principais países do Eixo foram rendidos pelos Aliados, encabeçados por França, Grã-Bretanha e Estados Unidos.

O resultado do conflito foi a divisão do mundo em socialismo e capitalismo, a hegemonia da economia norte-americana, a criação da Organização das Nações Unidas (ONU) e o Plano Marshall para reconstrução dos países aliados da Europa. Para sua recuperação econômica, a França elaborou o Plano Monnet.

Ao telefone dos avisos, Celestino Fornari, durante a 2ª Guerra Mundial,
na Itália, Fornari era um dos soldados da Força Expedicionária
Brasileira (FEB) que atuou no I Grupo de Infantaria quando da tomada
de Monte Castelo. Arquivo Familiar/Neri França Fornari Bocchese
O Brasil, que havia entrado no conflito ao lado dos Aliados e participado da guerra na reconquista da Itália, viu o término do governo Vargas, o avanço na indústria, instalação de siderúrgicas, a restrição às importações e o desenvolvimento nacional.

Em 1945, o setor produtivo brasileiro, composto por representantes das áreas do comércio, da agricultura e da indústria, assinou a Carta da Paz Social, um marco nas práticas de assistência social e de qualificação dos trabalhadores, nascendo assim, o Sistema S.

Crise Financeira Global
Em 2008, o mundo viu-se frente a uma crise financeira de dimensões globais, que teve início com o mercado de hipotecas dos Estados Unidos. O que originou a crise foi a oferta de crédito a juros baixos que fez com que muitas pessoas financiassem a compra de imóveis.
Com a demanda em alta, o preço dos imóveis subiu e os compradores investiam valores muito acima do que os imóveis valiam, acreditando que a valorização imobiliária viria. Criou-se a chamada Bolha Imobiliária.

Os bancos aumentaram a taxa de juros e quem fez empréstimos não conseguia pagar as parcelas, que subiram consideravelmente. A inadimplência disparou, as dívidas com hipotecas chegaram a US$ 12 trilhões, bancos e instituições financeiras faliram e, com a interconexão dos mercados financeiros, a crise tornou-se global. Desemprego em massa, queda do preço das commodities, bolsas de valores de todo o mundo foram afetadas. A saída foi a política de estímulos que o presidente Barack Obama aplicou nos Estados Unidos.

No Brasil, houve queda das ações, desvalorização do Real frente ao Dólar, diminuição da oferta de crédito e a redução dos investimentos internacionais.

Até a atual pandemia, a quebradeira de 2008 era considerada a pior crise econômica depois da Depressão de 1929.

O novo coronavírus
Em dezembro de 2019, foi identificada na China, na cidade de Wuhan, uma doença respiratória aguda, causada por um vírus com alto poder de contágio, a COVID-19. Da China, o vírus se espalhou pelo mundo e a Organização Mundial da Saúde (OMS) classificou a situação, em março deste ano, como pandemia. Na segunda quinzena de abril, havia registros de mais de 2,7 milhões de casos da doença em 210 países, e mais de 190 mil mortes. No Brasil, foram confirmados 49 mil casos e 3.313 mortes.

A doença segue sem possuir vacina e gerando muitas dúvidas. O remédio adotado em todo o mundo tem sido o isolamento social, o que tem acarretado instabilidade social e econômica. Houve um crescimento na disseminação de fake news – as chamadas notícias falsas – de todos os gêneros, e, assim como na Gripe Espanhola, corrida às compras em supermercados, esgotamento de medicamentos que supostamente trariam a cura da doença, uso de máscaras de pano, retomada e severidade nos hábitos de higiene, fechamento de escolas e empresas.

No último relatório apresentado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em abril, fala-se que o mundo vive uma crise sem precedentes, cujo resultado será pior do que o registrado na Grande Depressão. A previsão do FMI é uma queda de 3% na economia global e a brasileira deve encolher 5,3%, contra os 2,2% de crescimento que previa para 2020. Para o próximo ano, a economia deve mostrar sinais de recuperação, com a brasileira avançando 2,9%.

A economista Kate Raworth, em Economia Donut, salienta que “a ferramenta mais poderosa em economia não é o dinheiro, nem mesmo a álgebra. É o lápis. Porque com um lápis pode-se redesenhar o mundo”. A economia passou por diversas crises nos últimos 100 anos e no atual momento, sem dúvida, vive-se um período de incertezas. Ao término da pandemia, será necessário redesenhar a economia, os hábitos, as relações pessoais e profissionais e os costumes. A crise certamente trará mudanças estruturais para a vida de todos.




Texto: Silvia Bocchese de Lima
Revista Fecomércio PR - nº 135

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