A coalhada que ganhou Curitiba
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(Crédito Padaria América) |
Incêndio destruiu a tradicional Confeitaria Schaffer, localizada na Rua XV de Novembro, no Centro da capital paranaense. Mobilização popular foi essencial para a reconstrução e para o ressurgimento do prédio no fim da década de 1970
A capa do periódico dominical, de 22 de outubro de 1978, trazia estampada a manchete: “Apenas recordação diante das cinzas”. A matéria do Diário do Paraná relatava o incêndio que na noite anterior havia destruído, por completo, um tradicional ponto de encontro de Curitiba, a Confeitaria Schaffer.
Localizada na região central de Curitiba, no número 424 da Rua XV de Novembro – habitual espaço
de encontro e de discussão de ideias, assuntos contemporâneos e de manifestações populares –,
a confeitaria foi devastada pelas chamas. “Do ambiente refinado, discreto e familiar, restaram uma
velha geladeira inaproveitável devido ao fogo, e as raríssimas mesas de mármore e ferro, do século passado que acompanharam a Leiteria Schaffer durante seus 47 anos de existência. (...) Em menos de
cinco horas o fogo havia destruído uma tradição de duas gerações”, dizia a matéria.
Passada uma semana da tragédia, os jornais novamente publicaram, agora anúncios do Clube de Criação do Paraná, com textos “Pegou fogo num pedaço da gente”, “Ponha sua ideia aqui, pelo amor da Schaffer”, um desafio e ao mesmo tempo um compromisso de que algo precisava ser feito para que o comércio fosse reconstruído. Edições posteriores criaram espaços nos jornais de Curitiba para que ideias fossem colocadas em papel e enviadas ao Clube de Criação do Paraná. O apelo deu certo. Foram recebidas 50 sugestões de como possibilitar que a Confeitaria Schaffer voltasse a funcionar e para dissolver a ideia do proprietário do imóvel que havia solicitado ao Patrimônio Histórico do Estado, a demolição da fachada.
Uma das preocupações do Diário da Tarde, daquele 22 de outubro, era com a possibilidade de não
se ter acesso a uma última coalhada, principalmente aos consumidores de renome, um deles, o
“Vampiro de Curitiba”. “Um dos mais ilustres conhecidos fregueses foi Dalton Trevisan, que toda
tarde tomava leite ou coalhada na Schaffer, chamando de ‘sangue sem coágulo’ o leite”, trazia
a matéria.
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(Crédito: Departamento de Arquivo Público de Curitiba) |
Uma última coalhada
A mobilização popular foi fundamental para que os curitibanos pudessem voltar a provar da famosacoalhada. O escritório de arquitetura de Rafael Dely, Zenon Segundo de Braga Pesch e Ricardo José
Machado Pereira, de maneira graciosa criou o projeto de restauro da confeitaria e do sobrado, mantendo as características arquitetônicas da fachada, preservando também, a memória visual da cidade. Na Anotação de Responsabilidade Técnica da obra contava o seguinte texto: “Não houve remuneração pelo Projeto Arquitetônico por tratar-se de projeto de caráter comunitário, sendo
que a participação dos arquitetos foi em termos de doação do seu trabalho como contribuição para a
preservação da memória e da cultura da cidade”.
Para a execução das obras foram levantados recursos na casa de Cr$ 6 milhões, por meio da Fundação Roberto Marinho, Banco do Brasil, Banco do Estado do Paraná e Banco Bamerindus.
Terminada a revitalização, no primeiro semestre de 1981, além da confeitaria totalmente reconstruída,
os curitibanos tiveram acesso a um novo espaço cultural no centro da cidade, administrado pela Fundação Cultural de Curitiba. No térreo do edifício voltou a funcionar a confeitaria, e os outros dois
pavimentos foram ocupados por lojas, piano-bar, salas de exposição, de projeção – o Cine Groff –, de
atividades culturais e de lazer.
A Prefeitura de Curitiba alugou o imóvel por Cr$ 150 mil e assinou um contrato válido por dez anos.
De acordo com o jornal Folha de Londrina, de 21 de setembro de 2002, uma disputa judicial, iniciada
em 1997, pedia a reintegração de posse do imóvel ao proprietário Ivo Bernardo Heisler. “Heisler
havia locado o imóvel para a prefeitura na década de 80, mas desde 1997 não recebia o valor dos
aluguéis. A prefeitura se redime, informando que a responsabilidade é de quem sublocava o prédio”,
aponta o jornal.
Um jeito novo de vender leite
![](https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhLF2Y8P_4KxpcYDob7iSKixPzuWY9t4MP0zxbOGfz6_9pdYK9mDy3i5TWnqkjoEsQk0C9KOCbihWJMXs_tNL8GBdhI7l-FPk7xyzTv3JkWMDeXgpujWybpSb03f3iPiBEw5pScofKbNgM/s400/Carro+de+leite.jpg)
Autodidata, Francisco foi um dos pioneiros na implantação de um equipamento para pasteurização
do leite a ser distribuído na cidade, até que em 1916 inaugurou na Rua XV de Novembro, a Leiteria Schaffer. “O leite comercializado nesse estabelecimento asseado era considerado o melhor de Curitiba. Em poucos anos, os produtos da Chácara Schaffer adquiriram uma excelente reputação.
O ‘leite da Schaffer’ tornou-se muito procurado por sua pureza e valor nutritivo”, revela João
José Bigarella, em Imigrantes da Morávia no Paraná: de Römerstadt à Curityba (Saga dos Schaffer).
Francisco buscava levar ao campo tecnologia que resultasse em um produto de qualidade. Para prover
alimento ao gado leiteiro durante todo o ano, construiu um silo de grandes proporções para armazenamento da forragem – o primeiro no Paraná – e foi um dos primeiros a importar trator dos Estados Unidos, além de aplicar sistematicamente técnicas de seleção para o melhor desenvolvimento da produção.
Outra inovação que o empreendedor trouxe para Curitiba foi a maneira de comercializar o leite. “Novidade em Curitiba, pela forma como o leite passou a ser vendido: em higiênicas garrafas brancas, de bojudo e robusto modelo alemão, como a nossa geração chegou a conhecer antes do advento das embalagens plásticas”, conta Rafael Greca de Macedo, no Boletim Informativo
da Casa Romário Martins, de janeiro de 1981.
Outras sedes. Outros proprietários
A primeira passagem da Leiteria Schaffer no número 424 da Rua XV de Novembro foi rápida e logotransferida para o prédio do Clube Curitibano, na esquina da Rua XV de Novembro com a Barão do Rio Branco. Ali permaneceu até 1944, quando Francisco Schaffer, já com 79 anos de idade, foi fiador dos pais de Conrado Esser para o aluguel do antigo ponto da leiteria. “Como condição, Schaffer pediu que se conservasse o seu nome e a qualidade memorável dos seus produtos”, diz Greca no texto do boletim.
Com experiência com cafeteria, em Paranaguá, a família Esser assumiu o negócio, passou a oferecer além de leites e derivados, uma variedade de doces, refrigerantes e enlatados. Nascia a Confeitaria
Schaffer, que manteve o empreendimento aberto até 30 de agosto de 2002.
Receita da Coalhada
A Padaria América, outro tradicional comércio curitibano, datado do início do século XX, adquiriua marca e a receita da centenária Coalhadas Schaffer, servida na extinta confeitaria. Responsável pela
produção da coalhada, a Padaria América entrega o produto em mais de vinte locais em Curitiba e
região.
Sérgio Mercer, então presidente da Fundação Cultural de Curitiba, foi o líder da campanha pela reconstrução da confeitaria. É dele a declaração publicada no Boletim Informativo da Casa Romário Martins, de janeiro de 1981 e aqui reproduzida:
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(Crédito: Departamento de Arquivo Público de Curitiba) |
A leiteria & seu cardápio
“Durante toda a sua existência, a Schaffer recebeu com fidalguia a família curitibana, no ambientegermanicamente limpo, com suas mesinhas redondas de mármore, porcelana branca e garçons gentis e de todos conhecidos.
Quem experimentasse as delícias da Schaffer era candidato certo à volta. Conrado Esser sempre se orgulhou de jamais haver servido bebidas alcoólicas, e de nunca haver testemunhado qualquer incidente desagradável entre seus fregueses. A rotina de servir o pedido na mesa junto com a nota da caixa foi logo imitada por outros estabelecimentos da cidade. A coalhada servida em potes de porcelana, jamais conseguiu ser imitada. A Schaffer também detinha o honroso título de ser o local onde vetustas senhoras e adiantadas cocotas podiam entrar desacompanhadas, sem qualquer preocupação de ser importunadas.
Foi a Schaffer a introdutora do morango com nata na guia da gente curitibana, além dos mais aplaudidos “milk-shakes”, “frapés”, tortas de nozes e morangos, e a sempre decantada empadinha de palmito, que hoje vive na saudade do maior escritor da terra, Dalton Trevisan. Nilton Cavalcanti, o mais antigo garçon da casa, ali trabalhou durante 33 anos e nunca, em toda sua vida, trabalhou em outro prédio, porquanto fora garçon do Café Rio Branco, ali localizado anteriormente. Porte inglês, hoje com os cabelos encanecidos, Nilton tratava os mais assíduos pelo nome e costumava até adiantar-se aos pedidos”.
Revista Fecomércio PR - nº 130
Texto: Silvia Bocchese de Lima
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