Fruta rara

Conceição Evaristo (Crédito Rosalia Diogo)

Mulher, negra e pobre. Foi em uma favela de Belo Horizonte-MG onde nasceu Conceição Evaristo. Enquanto trabalhava como empregada doméstica concluiu o curso normal, aos 25 anos de idade e, já no Rio de Janeiro, passou em um concurso público e cursou Letras, na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Contrariando todos os prognósticos, Conceição tornou-se mestra em Literatura Brasileira e doutora em Literatura Comparada.
Suas obras já foram traduzidas para o inglês e francês e abordam temas relacionados à educação, gênero e relações étnicas na sociedade brasileira. Seu trabalho tem sido pesquisado por estudiosos de vários campos de conhecimento.
Na próxima segunda-feira (12), Conceição estará em Curitiba e participa da mesa-redonda de abertura da 35ª Semana Literária Sesc PR, ao lado de Letícia Wierzchowski.
Confira a entrevista:

A linguagem utilizada em Ponciá Vicêncio é diferente da encontrada em Olhos d´água. Uma é prosa, a outra é contos, mas a temática é a mesma: o negro, a mulher, a violência e a resistência. Esta diferença de linguagem é proposital ou cada obra é destinada a um público diferente?
Foi um processo mais ou menos natural. Toda escrita minha, eu nunca descuido. Tenho plena consciência que estou trabalhando com a arte da palavra, então tenho muito cuidado. Tenho um encantamento muito grande pelas palavras. Gosto de marcar os meus textos com a presença de palavras que ainda estão no vocabulário mineiro e que são oriundas das culturas bantas. Gosto também de trabalhar com algumas palavras do português arcaico e eu acho que eu fiz isso tanto em Ponciá Vicêncio como nos contos. Como os contos são narrativas mais curtas (apesar de eu ter contos maiores) e essa ser uma linguagem mais condensada em relação ao romance, talvez, isso sobressaia mais. Provavelmente essa linguagem poética dos contos tenha se sobressaído, mas eu não me lembro no processo de escrita de um momento em que eu tenha falado que ‘agora eu vou fazer esses contos com essa linguagem para diferenciar de Ponciá Vicêncio’, até porque foi um livro que antes de publicar ficou guardado oito anos. Alguns contos também já nasceram há mais tempo, outros nasceram depois de Ponciá. Sinceramente eu não me lembro de ter sido consciente de ‘esse livro eu vou escrever com essa linguagem e este outro livro eu vou escrever com esta outra linguagem’. Foi um processo natural.

O negro faz parte da matriz formadora do povo brasileiro. Por que há tanta resistência em se apresentar o negro como protagonista na literatura sem que ele seja colocado em senzalas?
Ao negro é dado uma cidadania lúdica. Enquanto ele dança e canta, esse espaço é permitido, mas mesmo assim permitido entre aspas, afinal apenas certas categorias de dança são permitidas aos negros. O negro aparece como sambista, mas dificilmente você vê um negro no balé clássico ou por exemplo no corpo de baile do teatro municipal aqui do Rio de Janeiro. Você verá um ou outro bailarino negro. Na música também, o negro pode ser sambista, mas dificilmente você vê a consagração de um maestro negro. Não que não exista, existe sim, mas quando ele sai fora do compartimento, do caixote que é reservado pra ele. Então há mais dificuldade pra visibilidade desse negro. E na área da literatura é interessante pelo seguinte: apesar da literatura brasileira ter tido grandes escritores negros (posso começar citando Machado de Assis) nós vemos como a crítica literária vai embranquecendo Machado de Assis, como se o negro não pudesse ter determinadas capacidades que a elite branca julga que é só dela. O negro pode ser um bom sambista, mas vai custar muito mais ser reconhecido como bom escritor. E por que a dificuldade de nós negros aparecermos como protagonistas? Porque não somos nós que estamos escrevendo a história oficial. Quais são os historiadores negros que você conhece? No Rio de Janeiro lembramos muito do Joel Rufino, Beatriz Nascimento. O relato dos grandes feitos da história tem sido feito pelo ponto de vista histórico do branco. Na crítica literária, conheço várias professoras críticas e com muita capacidade, diversas acadêmicas negras, mas sem uma projeção como o crítico literário branco. Esses espaços de consagração ainda estão muito determinados por definidas categorias sociais. A gente ainda pode pensar que quem ocupa estes espaços, normalmente começam pelos homens brancos, depois pelas mulheres brancas e nós negros ainda estamos abrindo as portas e, inclusive, forçando a nossa presença. Não há como negar o protagonismo dos africanos e dos descendentes africanos na história nacional brasileira.

Como você apresenta em suas obras a identidade nacional?
Eu tenho afirmado muito essa nacionalidade hifenizada afro-brasileira. Acredito que apresento a identidade nacional em minhas obras pela própria maneira como me coloco, com muita veemência. Eu digo que eu sou brasileira, sou uma escritora brasileira, mas eu tenho uma identidade nacional hifenizada que é a afro-brasileira. Porque quando eu me afirmo como uma escritora afro-brasileira eu estou inclusive prestando um tributo histórico aos povos africanos que vieram para o Brasil e eu sou descendente destes povos. Talvez o leitor possa pensar que toda a minha obra é marcada por essa identidade hifenizada. Eu penso o Brasil a partir da minha condição de mulher negra na sociedade brasileira e, é lógico que minha condição de mulher negra na sociedade brasileira me permite ou ela me induz. Por exemplo, a pensar um Brasil sob a minha perspectiva, eu não vou pensar um Brasil sob o ponto de vista de um imigrante italiano ou de um descendente de português. Não vou pensar o Brasil inclusive sob a perspectiva indígena. Na sociedade brasileira, quando os indígenas pensam em Brasil, eles pensam a partir da perspectiva deles, a partir, inclusive, de uma perspectiva de um dos povos dominados. Quando eu penso Brasil, a minha perspectiva é muito mais similar à perspectiva dos povos indígenas, porque como povos dominados, passam pelo processo histórico que se assemelha muito mais com a perspectiva dos povos africanos e seus descendentes do que da perspectiva do dominador, do colonizador. Eu também penso na minha situação de brasileira. Penso na minha identidade brasileira extremamente marcada e contaminada pela história dos povos africanos que vieram para serem escravizados e ajudar na colonização desse país, ajudar enquanto povos escravizados.

Como é vista no Brasil e na literatura uma mulher, negra e oriunda de uma favela?
Falei com muita veemência em Paris, que tenho sido vista também como uma fruta rara.  Não é muito comum encontrar na literatura brasileira, com visibilidade, uma mulher negra e oriunda de uma favela.  Isso não quer dizer que as mulheres negras não estejam produzindo. Há muitas mulheres negras produzindo, muitas escritoras negras que estão bancando a sua própria produção, como por exemplos grupos de São Paulo, de Salvador. Se fizermos uma pesquisa, encontraremos muitas mulheres negras produzindo como eu produzi a partir de editoras pequenas. Nosso trabalho não está disputando no mercado livreiro. O meu por A ou por B não tem uma grande projeção ainda, mas ele já tem uma projeção razoável em relação às outras mulheres negras. Sou vista também como a fruta rara. Vim de uma favela e afirmo isso sem dificuldade nenhuma, isso faz parte do meu histórico de vida. O fato de eu ter nascido em uma favela, ser uma mulher e toda a minha origem estar presa às classes populares e, hoje estar em um status ou em uma posição e em uma situação cultural e de produtividade que não é muito comum às mulheres negras, chama atenção. É bom porque me dá uma visibilidade, mas eu não tenho também a ilusão de que a curiosidade é muitas vezes a mola mestra para muitos. Essa curiosidade, eu tenho que saber reconhecer, que em determinados pontos acaba me abrindo espaços. As pessoas ficam muito impressionadas com o fato de eu ter vindo de uma favela, ter minha família semianalfabeta e pobre, e que trabalhei como doméstica e se perguntam como eu consegui chegar até aqui. A minha história, quando se trata de uma trajetória particular, até me envaidece. Eu tenho orgulho de ter percorrido este caminho, mas trata-se de uma trajetória perigosa. Pelo fato de eu ter conseguido, pode-se criar um discurso que se a pessoa se esforçar, consegue. Aquela mulher negra e pobre se esforçou e conseguiu, mas não é só isso. Eu encontro uma série de mulheres negras, jovens negras, meninos negros, que estão se esforçando e que dificilmente chegarão lá porque o sistema vai criando interdição. Tenho 70 anos e hoje que eu estou ganhando uma visibilidade. Quando um negro consegue e, um grande exemplo disso, que todos tomavam como parâmetro foi o juiz Joaquim Barbosa, você pode até considerar essa história como exemplar, mas essa história é a exceção confirmando a regra. Quando um consegue, ainda é exceção e essa exceção confirma que existe uma regra de dificuldade e de interdição para os afro-brasileiros. Nos orgulhamos, mas não podemos perder essa perspectiva, não podemos nos encantar pelo canto da sereia. Por que só uma Conceição Evaristo?

Você transita no universo da antropologia, da sociologia, da história e da literatura e tornou-se referência acadêmica no país e no exterior. Foi sua experiência de vida que a fez levar para a literatura as dificuldades do povo negro?
Sem sombra de dúvidas. Toda a minha produção acadêmica e literária é profundamente marcada pela minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. Esse lugar diferenciado em que eu vivo, ele me cria. É o lugar onde eu nasci, fui criada e educada.  Até os 70 anos, é esse lugar diferenciado que marca minha vida, é esse lugar diferenciado que me permite também uma escrita sobre a minha perspectiva. Quando estou falando de uma mulher negra e de uma mulher pobre, não preciso fazer laboratório ou sair no campo de pesquisa para reconhecer o que essa mulher diz. Miriam Alves, escritora afro-brasileira de São Paulo, diz que quando escrevemos sobre empregadas domésticas nós não somos a patroa que está na porta do quarto, olhando a empregada doméstica e escrevendo sobre ela. Somos a própria empregada doméstica, escrevendo sobre nós mesmas.

A literatura que trata do negro e suas diversas temáticas é pouco explorada ou ainda é inacessível ao grande público?
Ela ainda é pouco acessível do grande público. Ela é uma literatura que ainda circunda muito entre nós mesmos, entre o próprio movimento social, o movimento negro, o movimento de mulheres negras, as professoras que, mesmo não estando dentro do movimento social, estão escutando o eco do discurso dos movimentos sociais. Hoje nós já temos um número de acadêmicos negros e não negros, professores acadêmicos, pesquisadores, tanto na área da literatura, quanto na área de historia, antropologia e na área da educação principalmente. Temos vários pesquisadores, negros e não negros, que estão trabalhando nossos textos, tanto com o meu texto como com o de outras escritoras negras, de outros escritores negros. Isso tem lançado os nossos trabalhos nesses campos de estudo, mas temos ainda um grande caminho a percorrer até nos tornarmos escritores conhecidos para o grande público. As editoras que nós temos publicado, são pequenas, de médio porte e, isso também tem uma importância muito grande porque, na verdade o livro é também um objeto de consumo, precisa de todo um aparato comercial e de divulgação que só as grandes editoras estão preparadas para esse tipo de trabalho.

Algumas universidades estão exigindo como leitura obrigatória, em seus vestibulares, a obra Ponciá Vicêncio. Você vê esta obrigatoriedade como algo positivo e que a academia está voltando os olhos para esta temática?
Vejo como positiva essa procura e inserção de autores dessa literatura que alguns chamam de afro-brasileira, outros chamam de literatura negra ou literatura afrodescendente. O que vale é dizer que é uma literatura produzida a partir da perspectiva de sujeitos inseridos dentro dessa origem dos povos africanos. Esses caminhos foram abertos para a inserção desses livros nos vestibulares, é fruto da Lei nº 10/639, sancionada no primeiro governo Lula, em 2003. Na oportunidade foi instituído o estudo da história e das culturas africanas e afro-brasileiras no currículo escolar. Isso fomentou uma ambiência, uma recepção e também uma necessidade dessas obras. Isso fez também que nossos livros passassem a fazer parte de vestibulares. Alguns leem a obra só para o vestibular, outros a continuam estudando, procuram outros livros. Eu acredito que a literatura é um espaço de revelação de identidade de um povo. Uma literatura que me possibilite pensar a identidade do indígena, do negro, identidade de gênero, das mulheres ou ainda uma identidade que não seja heteronormativa, uma identidade homoafetiva. Assim eu acredito que nós temos mais possibilidades de abarcar o que é realmente o Brasil, o que é realmente o povo brasileiro e de compreender essa diversidade que a gente louva tanto, principalmente para o estrangeiro. O Brasil gosta de afirmar que nós somos um país diverso, que somos um país plural, mas às vezes na prática, essas relações, quando confrontam o espaço de poder e, saber é poder, essas relações são mais dolorosas, não são tão felizes como se conta na teoria.

Você acredita então que a literatura é uma ferramenta em busca da igualdade?
Acredito. Mas não é só a literatura, porque isso é responsabilizá-la demais como arte mesmo. Ela é uma possibilidade porque a literatura fala com a emoção e emoção leva você a pensar.

A temática da Semana Literária do Sesc PR trata da variedade de manifestações culturais no Brasil e seus contrastes. O que o público pode esperar da sua participação?
A primeira coisa que o público pode esperar é a percepção mesmo. Terá um contato ou ouvirá uma escritora negra, uma mulher negra, cidadã negra que fará o seu discurso, a sua fala a partir de uma experiência como uma cidadã negra na sociedade brasileira. O público realmente encontrará uma pessoa que tem marcada essa posição, tanto no nível do inconsciente quanto no nível do consciente. Eu faço essa opção ideológica para falar a partir da minha experiência, da minha condição de mulher negra na sociedade brasileira. A afirmação de como a minha história de cidadã negra, marca a minha literatura. Tenho percebido que meu texto literário não é um texto que seduz só os meus pares. Não, é um texto que tem seduzido também homens, velhos, jovens, bancos, estrangeiros, tanto é que a obra já foi publicada nos Estados Unidos, México, França e Alemanha. É uma obra que, a partir da minha particularidade tenho conseguido esse diálogo com sujeitos que não tenham uma história de vida semelhante a minha. O que o público encontrará uma mulher negra que falará a partir de seus lugares de pertencimento.

Por: Silvia Bocchese de Lima e Andressa Parra


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