À memória do café

 Primeiro museu do Sesc no estado é dedicado a preservar e relembrar a história que marcou o Paraná


Museu do Café, em Londrina

Quantas narrativas cabem em um único prédio e quantas histórias podem ser contadas tendo como pano de fundo a cultura cafeeira? Para permitir que a memória coletiva de Londrina e região seja preservada, utilizada para pesquisas acadêmicas, documentação, conhecimento, acessibilidade de informações, promoção da diversidade cultural, o Sesc PR se propõe a evocar a centenária cultura cafeeira paranaense e de seus inúmeros personagens. Com a inauguração do Museu do Café, a instituição passa a ser uma espécie de guardiã do patrimônio cultural local e regional e a desempenhar um papel essencial na educação, na preservação da cultura e da história do café, além de, certamente, enriquecer a experiência humana. 

O Museu do Café traz, além das histórias já contadas, um olhar para aqueles personagens vitais para a cafeicultura e para o desenvolvimento de Londrina e que, por inúmeras vezes, deixam de figurar nos livros e nas narrativas oficiais, como as crianças, as mulheres, os trabalhadores, os povos originários, entre outros. Para o doutor em História e professor da Universidade Estadual de Londrina (UEL), Rogério Ivano, o museu não é um local apenas de antiguidades e de passado, mas um centro de informações contemporâneas onde deve haver a constante renovação de conteúdos. “Não só se guardam as relíquias da sociedade, as histórias de sucesso, mas o museu precisa colocar as problemáticas da sociedade também em discussão. Sobre a história do café, a proposta é trazer debates da historiografia contemporânea, entendendo que a história do café começa de maneira difícil, até mesmo violenta. A história do ouro verde do Norte do Paraná não existe sem essa trajetória, as diferentes fases, etapas”, avalia. 


Essas histórias estão contadas em objetos, painéis, exposições, vídeos, depoimentos, fotografias, relatos, dispostos em toda a área do museu. 

O PRÉDIO

A edificação que hoje abriga o Museu do Café é outra personagem dessa importante história. Localizada ao lado da antiga Cadeia Pública de Londrina, foi construída mais de duas décadas depois, na sobra do terreno triangular doado pela Companhia de Terras ao estado. O Diário do Paraná de 11 de outubro de 1963 trazia a boa nova de que: “Está pronto o novo edifício da Delegacia de Polícia, obra iniciada em meados do ano passado. A construção do novo edifício foi iniciada graças a atuação do então delegado Eudes Brandão, que não mediu esforços no sentido de conseguir recursos para as obras de uma Delegacia à altura do progresso da cidade”, contava a matéria, informando ainda que apenas aguardavam a chegada do mobiliário para que a inauguração ocorresse. Desde então, o prédio abrigou a 10ª Subdivisão Policial (SDP) por 54 anos, o Instituto Médico Legal, Instituto de Identificação, cartório, necrotério, salas de queixas, de exames, do delegado chefe e do delegado adjunto, até ser desocupado em 2018 e ter início a reforma e o restauro pelo Sesc PR.


CULTURA CAFEEIRA

Enquanto a erva-mate e a madeira foram os ciclos econômicos que levaram às regiões Centro-Sul e Sudoeste do Paraná a serem colonizadas e exploradas, a pecuária foi responsável pela passagem e fixação dos tropeiros nos Campos Gerais e o ouro no Litoral e na capital do estado, o café levou a expansão da monocultura paulista ao Norte do Paraná, o desenvolvimento e a criação de algumas das mais importantes cidades paranaenses, tornando vazios populacionais em regiões prósperas e urbanizadas. Exemplos disso são Jacarezinho, Londrina, Apucarana, Maringá, Paranavaí, Arapongas, entre tantas. 


A cultura cafeeira no Paraná foi a continuação das plantações que vinham desde Minas Gerais – quando do esgotamento da exploração aurífera –, passando pelo Rio de Janeiro, São Paulo, até chegar às terras do Norte paranaense. Porém aqui, um detalhe fez toda a diferença: o solo. Resultado de derrames basálticos, o solo do terceiro planalto paranaense tem um aspecto avermelhado, repleto de minerais e extremamente fértil. Foi da palavra vermelha, em italiano, rossa, que a terra ganhou o apelido de roxa. E foi a qualidade da terra que a Companhia de Terras Norte do Paraná utilizava em seus anúncios publicados em jornais de todo o país, como no carioca O Jornal, de 13 de julho de 1941. 


A abertura da Estrada de Ferro São Paulo-Paraná ocorreu em 1924 e, em 1935, do trecho Jataí Paraná-Londrina, que nesta época já começava a sentir os efeitos da economia cafeeira. A colonização dessa região ocorreu de forma rápida pelo grupo inglês da Companhia de Terras Norte do Paraná, que dividia as terras em sistema de pequenas propriedades rurais, em lotes coloniais, glebas e zonas. “Eu cheguei em Londrina no colo da minha mãe, com seis meses de idade, viemos de Cândido Mota, interior de São Paulo. Meu pai veio com a carroça e dois cavalos, onde trouxe parte da mudança e alimentos, para vir para Londrina plantar café. Ele e meus tios não tinham terras em São Paulo, era muito caro. Aqui eles compraram terras da Companhia de Terras que vendia a longo prazo para pagar com a produção”, conta Francisco Ontivero, proprietário da Móveis Brasília, uma rede de 19 lojas, iniciada em Londrina em 1967 e expandida quando a cidade ainda era conhecida como a Capital Mundial do Café.

TRÊS FASES

A cafeicultura paranaense tornou-se a riqueza do estado e trouxe o desenvolvimento e o crescimento da economia estadual. O ciclo da cafeicultura no estado pode ser dividido em três distintas fases. A primeira, de 1900 a 1945, é marcada pelo desbravamento e implantação da cultura; a segunda, de 1946 a 1974 é de expansão e racionalização e, a terceira, de 1975 a 2000, de retração e adequação tecnológica. 



Londrina foi responsável, na década de 1960, por cerca de 51% do café produzido no mundo. Enquanto na década de 1950 o Paraná tinha 300 mil hectares dedicados ao plantio do café, em 1962, saltou para 1,6 milhão de hectares plantados. 

Foi no período áureo do café que teve início a construção, em Londrina, do Edifício América, um prédio de 17 andares, que concentrava corretoras, exportadoras, escritórios, bolsa de mercadorias – ou seja, todo o mercado da comercialização do café. “O Edifício América, não só ele como o seu entorno, acomodou as maiores filas compradoras de café do mundo, no fim dos anos 50, 60 e até hoje. Aqui foi o centro da capital mundial do café. Para conseguir adquirir uma sala comercial no Edifício América era muito concorrido e caro. Se fosse transformar em valores atuais, uma sala pequena, de 40 metros quadrados, não sairia menos do que três milhões de reais. Para entrar no prédio formavam-se filas e mais filas, de tantos corretores e produtores que circulavam aqui dentro”, conta o corretor de cafés, presidente da A Rural Corretora de Cafés e Cereais e ex-presidente do Sindicato dos Corretores de Café no Estado do Paraná (Sincafé), Carlos Antonio Amaral Monteiro. 

DECLÍNIO 

A decadência da cafeicultura paranaense ocorreu, principalmente pelas fortes geadas de 1963, 1964 e 1966; pela devastadora Geada Negra de 1975, pelo medo generalizado de que uma nova geada ocorresse e pelo desenvolvimento da soja como um produto agrícola de grande aceitação, além do trigo e da pecuária. “O que me vem à memória do dia 18 de julho de 1975 é o preto do café geado, necrosado. No começo da madrugada e pela manhã os cafezais estavam cheios de gelo e brancos, depois começaram a ficar pretos ao longo do dia, conforme o sol batia. Foi uma visão desoladora: a lavoura inteira preta e depois o cheiro da folha necrosando, o cheiro de morte, de algo apodrecendo”, relembra a produtora de café, proprietária da Fazenda Palmeira e, há época adolescente, Cornélia Margot Gamerschlag. 


ÊXODO RURAL 

A dizimadora geada de 1975, que na relva – segundo dados do Instituto Brasileiro do Café – registrou -9ºC, queimou os pés de café das folhas à raiz, sendo necessária a retirada integral dos pés de café da lavoura, sob risco de ocorrerem incêndios nas plantações, ocasionando a erradicação de lavouras cafeeiras. O jornal Diário do Paraná, de 19 de julho de 1975, trazia a manchete “Geada acaba com café no Paraná” e, em entrevista, o então presidente da Federação da Agricultura do Estado do Paraná, Mário Stadler de Souza, qualificou as geadas que se abateram sobre o Paraná de “uma grande tragédia econômica e social” e que suas principais consequências podem ser, a curto prazo, “um crise de graves reflexos para a economia nacional e a completa erradicação do café paranaense”. 

A geada foi responsável também, de acordo com a Revista Cafeicultura, pelo êxodo rural de cerca de 2,6 milhões de paranaenses. “Meu pai tinha um sítio de 15 alqueires, uma casa grande e, de um dia para o outro, fomos morar em um cômodo alugado de nove metros quadrados, meu pai, minha mãe, eu e meus dois irmãos pequenos. Com a geada, de sitiantes nos tornamos bóias-frias”, conta Amauri Ramos da Silva, técnico em museologia, funcionário do Museu Histórico de Londrina desde 1987. 

As décadas seguintes viram o lento renascer da cafeicultura no Paraná, trazendo consigo também o conceito de cafés especiais. 

CIÊNCIA E TECNOLOGIA 

Sumidade quando o assunto são estudos e melhoramentos em cafeicultura, o doutor em Agronomia, Genética e Melhoramento de Plantas e pós-doutor em Genética, Tumoru Sera, foi pesquisador do Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná (IAPAR), hoje Instituto de Desenvolvimento Rural (IDR), onde coordenou o Programa de Melhoramento Genético, foi líder do Programa Café, publicou mais de 50 trabalhos completos em revistas científicas e desenvolveu diversas variedades de café registradas no Ministério da Agricultura, com resistências, principalmente à ferrugem, à nematóides e à geada. “Cada variedade foi direcionada para solucionar um problema e começaram a ter resistências múltiplas. Resistência a adversidades ambientais, biológicas e com qualidade”, explica Sera. 

Seus trabalhos e estudos promoveram uma revolução no desenvolvimento de novas variedades de café, a exemplo, da IPR 100, a primeira no mundo com resistência às principais nematóides do Brasil e uma das mais plantadas no Paraná, São Paulo e Minas Gerais. Tumoru Sera conquistou reconhecimento nacional e internacional por seus estudos, que resultaram em aumento da produtividade, qualidade da bebida, redução de custos de produção e aumento da rentabilidade. 

CAFÉS ESPECIAIS

Londrina e Região Norte do Paraná destacam-se hoje pela produção dos cafés especiais – uma categoria de café de alta qualidade, e que desde o cultivo, a colheita, a secagem, o processamento, a torra até a xícara do consumidor tem-se atenção e cuidados extras. Produtores de café da região têm conquistado premiações nacionais e internacionais com os cafés produzidos e o foco é a qualidade do grão ofertado. “O café é uma fruta. O pé do café precisa estar vigoroso, bonito e saudável. É preciso colher o fruto maduro, fazer o processamento de secagem correto para que não fermente e não deixar o café estragar, fazer uma torra correta, no ponto certo. É todo um conjunto de detalhes que você tem que fazer para o café ser especial, desde o plantio até a torra. Todo este trabalho e processo é que vão resultar em um café de 80 pontos pra cima”, conta o produtor Fernando Rosseto, do Sítio Eliza, em Mandaguari, campeão nacional do Concurso Nosso Café Yara 2017 e vice-campeão 2018. 



EXPOSIÇÕES 

O artista plástico e arquiteto Cássio Onohara é responsável pela exposição Todo Café Tem História, um convite ao público: “mergulhar em lembranças aconchegantes, por meio das memórias afetivas que o café evoca. Grande parte das histórias contadas têm o olfato como memória afetiva. O cheiro remete à família, a lugares, à saudade, a um moedor de café azul no quintal da avó ou a um amor antigo”, destacou o artista, que produziu obras compostas por pinceladas de tinta e uma mistura de pintura com café. 



No andar superior do museu, o público pode visitar a exposição de fotos produzidas pelo fotógrafo Bruno Tadashi, no Senac PR desde 2014, que registrou todos os Cafés-escola do Senac espalhados pelo estado. Nos corredores do Sesc Cadeião é possível acompanhar os registros fotográficos capturados durante as obras de restauro e reforma da obra, produzidos pela orientadora de atividades do Museu, Angellica Kelci Kubo Pastorello. 

ACERVO

Para compor o acervo do museu dedicado à memória da cultura cafeeira que conta com mais de 750 itens, o Sesc PR conclamou a população londrinense e do Norte do Paraná que colaborasse com doações de fotografias, objetos, documentos e artefatos históricos que ajudassem a contar e preservar esta história. 

 O corretor de cafés Carlos Antonio Amaral Monteiro foi um dos doadores que formalizou a entrega de diversos itens ao museu, entre eles uma coleção completa de mais de 500 xícaras e uma mesa de degustação de cafés. Os materiais recebidos compõem os espaços expositivos do museu e de outros ambientes com o tema. 

Darcy Ramires Paulo, ex-gerente regional da Inter Continental de Café S/A, já aposentado da função da empresa em que trabalhou por quatro décadas, também doou fotografias, documentos e objetos. 

O museu ainda está recebendo doações para composição do acervo.


VISITAÇÕES

O público pode conhecer os espaços expositivos dedicados ao café, salas de atendimento, de técnicos e de dança. biblioteca; cursos de valorização social, como moda, figurinos, corte e costura; salas de artes; área de convivência; salas de música onde funcionarão o Centro de Difusão Musical e o Laboratório Cultural de Música; sala de múltiplas artes, sala educativa para atividades complementares às visitas guiadas ao museu, e um espaço para armazenagem e reserva técnica do acervo. Além disso, há toda a estrutura da unidade do Sesc Londrina Cadeião e do Café-escola do Senac. 

O museu está localizado na Rua Sergipe, nº 52, e os horários de visitação são de terça a sexta-feira, das 9h às 21h, e aos sábados e domingos, das 9h às 18h. 

Para agendamentos de grupos e informações, entrar em contato pelo telefone (43) 3572-7700.


Revista Fecomércio PR - nº 155
Texto: Silvia Bocchese de Lima
Fotos: Ivo Lima, Bruno Tadashi e Silvia Bocchese de Lima

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