O hábito da ética

O historiador Leandro Karnal defende que a virtude ética deve ser adquirida pelo
hábito e precisa ser ensinada em casa, na escola, no trabalho. Aos empresários,
um conselho: ser ético é altamente lucrativo



A figura do personagem Zé Carioca ainda é utilizada para ilustrar uma das características constitutivas do povo brasileiro: a malandragem. Criado por Walt Disney, na década de 1940, Zé Carioca era constantemente assediado por cobradores e nunca os pagava, vivia a plenitude do ócio e era exímio com a lábia. É a típica malandragem que Fernando Motta descreve em Cultura e Organizações no Brasil como uma predisposição para tirar vantagem, passar para trás e, eventualmente, enganar, presente do malandro maltrapilho ao de terno e gravata.
Em palestra realizada em Blumenau, SC, durante o 32º Congresso Nacional dos Sindicatos Patronais do Comércio de Bens, Serviços e Turismo, o professor doutor da Universidade Estadual de Campinas, Leandro Karnal, ao abordar o tema “Vida sem ética dá mais trabalho”, lembrou os problemas éticos pelos quais o Brasil e os brasileiros têm passado e vivido no decorrer da história.
Leandro Karnal (Divulgação)
Karnal pontuou o ranking sobre a percepção da corrupção no mundo, divulgado no início de 2016, pela organização não-governamental – Transparência Internacional –, que analisa 168 países e qualifica o Brasil na 76ª colocação. Um ano antes, o país ocupava a 38ª posição, mas o escândalo na Petrobrás foi um dos motivadores para a queda na classificação. Somália, Coreia do Norte e Afeganistão figuram entre as nações mais corruptas do mundo.

Ética na Política
O professor discorreu sobre um episódio, ocorrido logo após o término da Ditadura Militar, em que um ministro utilizou o carro público para levar uma cachorra ao veterinário e, de um governador que fez uso do helicóptero público para viagem da babá e do cachorro ao litoral para atendimento à família dele. “O problema central do Brasil é a confusão que existe entre o público e o privado.
Temos que mudar nossa cultura de escravidão, que exige ser servido, para uma tradição republicana, na qual temos funções e hierarquias diferentes e até poderes distintos. Mas, quanto maior o meu poder, maior a minha obrigação em servir as pessoas”, defendeu Karnal.
Em uma sociedade repleta de “Zés Cariocas” não há de se esperar representantes políticos com condutas diferentes. “Se a ética não começar na relação dos pais com os filhos, passar pela fidelidade nos relacionamentos,  não continuar na escola, não atingir as empresas, ela nunca chegará à política.
O governo é o espelho do social. Enquanto nosso trânsito for violento, enquanto houver racismo, bullying nas escolas, enquanto houver violência entre as pessoas, nada se espera distinto de um governo eleito por estes mesmos eleitores, do que um governo não ético. Não existe estado corrupto
baseado em uma nação não corrupta”, afirma o historiador.
O professor conta que ouve constantemente críticas ao estado e, na sua avaliação, quase todas justas, mas revela lecionar há 33 anos. Neste período recebeu incontáveis atestados médicos falsos de pais de alunos. “Há mais de três décadas eu recebo estelionato de pais e, talvez este seja o pior exemplo que uma criança pode receber na vida”, avalia. Karnal acredita que possivelmente em 2016 a inflação a ser registrada no fim do ano será de 7% e o desemprego deverá passar da casa dos 10% a 12%, entretanto lembra que no último mês do governo Sarney, o país registrou 84% de inflação ao mês, com índice acumulado de 4.800%. “As crises econômicas registradas em 1929 e 1989 certamente foram piores do que a atual, mas a principal crise que assola o país é o esvaziamento de valores. Precisamos resgatar valores que valham a pena acreditar”, diz.
(Crédito Sindilojas Blumenau)

Ética é hábito
Karnal crê que a ética é uma virtude a ser adquirida pelo hábito. “Ética não é um dom natural e não faz parte do código genético. Os seres humanos são distintos dos demais animais porque, em primeiro lugar, além da natureza, temos um exercício de construção. Nossa natureza é capaz de adquirir ética, aperfeiçoá-la e ensiná-la”, pontua.
O professor lembra que há 30 anos o uso do cinto de segurança não fazia parte do cotidiano do brasileiro. Apesar do Código Brasileiro de Trânsito, de 1966, exigir o cinto como item obrigatório dos veículos automotores, o então acessório perdia-se no banco traseiro do carro. “Nós mudamos mediante educação, coerção, bom senso e multas”, salienta.
A crença aristotélica foi traduzida em um neologismo, a perfectibilidade do caráter, ou seja, o caráter pode ser transformado e melhorar a cada ano. Karnal pontua “se eu quiser, se melhorar o caráter for meu projeto de vida, apesar das dificuldades, eu posso transformá-lo. Eu preciso melhorar meu caráter sempre e constantemente”. 

Ética empresarial
O palestrante defende que valores éticos precisam ser ensinados para filhos, alunos e para funcionários. “Haverá sempre menos ética na medida em que eu pai, eu professor ou eu patrão, for mais omisso. Quanto mais eu me omitir no campo da ética ou quanto mais eu for um péssimo exemplo, mais eu estou impedindo o florescer da ética”, diz Karnal. O ser ético, para Karnal, tem refletido na conduta das empresas e associar uma marca a um comportamento ético é, atualmente, lucrativo. “Pela primeira vez na história descobrimos que não ser ético prejudica os negócios a médio e longo prazo. Grandes empreiteiras estão tendo prejuízos na casa de bilhões de reais por causa de propinas fornecidas no passado. Você deve ser ético para reforçar a sua marca no mercado, eticamente intransigente, justo e equilibrado, porque os consumidores querem, cada vez mais, associar este código de direito de consumidor ao exercício crítico e cidadão”, enfatiza.
O historiador afirma que são crescentes os casos de sucesso de empresas que optaram por comportamentos éticos e confessa acreditar que o resultado da atual crise no Brasil resultará em um eleitor e um consumidor profundamente engajados, optando por questões éticas. 
Por fim, para Karnal, ouvir ou ler sobre ética e continuar cometendo os mesmos erros é como ir ao médico, considerá-lo um excelente profissional e não aplicar nada do que foi aconselhado. “Aí eu recomendo, não vá ao médico e não escute palestras sobre ética. Vá direto pelo acostamento, é a sua vocação”, conclui.


Texto: Silvia Bocchese de Lima
Revista Fecomércio PR - nº 112

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