O meu peso é a minha balança

Pá, pá. Tiroteio. Pessoas correndo. Menino avião subindo as ladeiras do morro. Boca de fumo. Guerra pelo poder. Crianças respirando entorpecentes e a violência diariamente, armadas com a indiferença da sociedade e com uma pistola 765, onde policial corrompido não é exceção, é regra.

Dentro desse contexto, aparentemente libertino, surge uma nova lei, a lei da favela, que obedece quem pode e segue quem tem juízo. A ordem é matar o inimigo, ou qualquer um que ouse olhar torto para um sujeito armado.

Para os que acreditam no determinismo geográfico, seria impossível pensar que de um ambiente como este pudesse sair algo bom ou alguém de bem. O filme Cidade de Deus, dirigido por Fernando Meirelles e baseado no livro de Paulo Lins, é o relato do dia a dia de uma população que vive às margens da sociedade, dos seus regimentos e das suas preocupações. Sociedade essa, dominante, que se utiliza da indústria cultural para despertar os desejos, o consumo e anseios que a cocaína e o tráfico de armas tornaram reais.

No morro, as leis e a moral são ditadas por Zé Pequeno, um menino que cresceu e que encontrou no tráfico e no crime o seu modo de viver. Em pouco tempo, tomou as bocas de fumo, armou-se e impôs ali, o seu modo de ver o mundo e como o mundo os via. Sua ética pessoal dizia que ele era o lado certo da vida errada. Em Cidade de Deus, a ordem é não cometer furtos dentro da favela. À população dali, oferece-se oportunidades de trabalho rentável: avião, vapor, olheiro, endolador, contador e por fim, gerente da boca. De acordo com o código de conduta vigente na favela, imposto aos moradores, cada barraco era potencialmente um esconderijo de um traficante fugindo da polícia ou de um arquirrival. Para obedecer, não era necessário empunhar a arma na cabeça de ninguém, bastava apenas realizar alguns serviços de interesse geral, enfim, melhoramentos para a comunidade, que todos aceitavam as normas.

Segundo Álvaro Valls, em O que é ética, ele a define como sendo um comportamento adequado aos costumes vigentes. Ora, se um morador recebe um traficante em sua casa, quando este está em fuga, está respeitando os costumes vigentes na favela. Valls afirma ainda que quem se comporta de maneira a divergir dos costumes aceitos e respeitados, estaria no erro. Bem, isso é válido, pelo menos, até que a maioria não adote um comportamento diferente ou que surja um outro traficante ditando normas diversas.

Há porém aqueles, que embora vivendo neste ambiente, cultivam princípios diferentes dos pregados. Acreditam que apesar de não haver o reconhecimento merecido, o trabalho legal é mais digno que o crime. Dentro desses preceitos, encontra-se Busca Pé. Um rapaz, consumidor de cigarros de maconha, que embora vivendo no meio de tantas barbáries mantinha-se convicto de que o trabalho suado e mal pago era a solução para a sua vida. Mas como continuar acreditando na legalidade, se os direitos de um cidadão comum lhe foram tirados e o que lhe restou foram apenas os deveres?

Busca Pé vivia em constante dilema, vivia angustiado. Angústia essa, descrita por Kierkegaard, aquela que o homem sente diante do mal, mas também a que sente diante do bem, quando preferiu o mal. Se o que angustia é a possibilidade, Busca Pé era um angustiado, um sofredor. A ele foi dada a possibilidade descer o morro, trabalhar no asfalto, em um supermercado e também o de subir e descer o mesmo morro, mas como avião de bandido. O último, certamente lhe seria mais rentável, mas Busca Pé preferiu a outra opção.

Se o menino do morro foi sábio? Platão dizia que o sábio é um homem virtuoso, ou aquele que busca ter uma vida virtuosa , conseguindo a ordem, harmonia e o equilíbrio. Mas ele foi ético? Se eu sou contrária ao tráfico de drogas, não posso aceitar o consumo dessa mesma droga. A ele foi dado o direito de optar. Optar entre o bem e mal. A sua ética pessoal é o seu peso, é a sua balança.


Silvia Bocchese de Lima

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